Thursday, March 27, 2008

TIRARAM MEU CHÃO

Apenas um conto que exige coragem pra contar.


Amanheceu. Eu continuava sentindo a estranha sensação que me perturbou por horas e horas naquela madrugada, a mesma sensação que me impediu de dormir. Havia algo de estranho no quarto, não conhecia aqueles cheiros, meu colchão não era tão duro assim, minha roupa não era aquela, meu despertador não tocou, e mesmo se tivesse tocado apenas seria testemunha da minha noite de insônia Foi a estranheza que me tirou o sono e que por vezes me fez duvidar se estava dormindo ou acordado. O galo cantou! Galo? Estou acostumado ao canto estridente das buzinas, ao barulho da cidade grande logo cedinho e não ao cantar dos galos. Ao me levantar da cama percebo um chão de terra batida, minha mente e meus pés não reconheciam tal chão. Chão é coisa que não se nota. O chão da gente é valorosamente imperceptível, a gente se acostuma tanto com o chão que pisa que já não o nota, até que pisamos em outro chão e vem na mente a frase de quem perdeu a preciosa segurança de ter um chão pra pisar –“ tiraram meu chão “. Agora eu tinha essa sensação de chão tirado, estava num mundo, numa casa que não era minha, pisando num chão que não era o meu e, para piorar tudo, não me lembrava de ter viajado pra lugar algum. “Tiraram meu chão”, era a frase que gritava alto dentro de mim.

Ao caminhar pela casa percebi que a simplicidade dava o tom da decoração daquele ambiente. Móveis de madeira e palha se acomodavam bucolicamente aos cantos do quarto e da pequena sala que ali havia. Quadros pendulavam nas paredes de barro como que fugidos de algum antiquário, uma cabaça cheia d´água me esperava oferecendo-me generosamente o frescor que aliviaria o forte e abafado calor que eu sentia. E o silencio? Nossa, era com se estivesse num vácuo de solidão em meio a uma simplicidade de vida que não conhecia até aquele momento de minha história pessoal. Me acostumei a estar cercado de pessoas, que na maioria das vezes, faziam tudo pra me agradar. Me acostumei ao mármore, perfume da riqueza e me sentia muito feliz por ser assim. Naquele momento, diante de coisas tão simples e de pouco valor, diante do perfume de roça, confesso que me senti estranhamente vazio.

Porém o choque maior ainda estava por vir. Dirigi-me a porta do casebre que já estava entreaberta, lá fora tudo parecia ter sido deixado repentinamente. Um pequeno cachorro magrelo deitado sobre as patas dianteiras me acompanha com os olhos. Sede, muita sede, calor, muito calor, solidão, muita solidão. “Tiraram meu chão, essa não é minha terra”. Tudo parecia tão miserável que, agora, me sentia enojado.

Ao caminhar por aquele terreno descobria ali uma vila de casas idênticas a que me abrigara, todas vazias. Percebi então que aquele vilarejo estava num platô de uma montanha e que um barranco me oferecia a visão de um belo vale que se estendia ao longo de um pequeno monte onde uma pequena multidão se mantinha assentada. Eles pareciam ouvir alguém palestrando. Foi nessa hora tive a sensação de estar vivendo um dejavu – já tinha visto essa cena. Claro que me aproximei e isso confirmou minha desconfiança. Supunha que aquilo que eu via acontecer diante de meus olhos eu já tinha visto, de fato, com a imaginação alimentada pelos ouvidos. Eu estava diante do monte que testemunharia a maior mensagem de todos os tempos. Obrigado Senhor, que privilégio, poderia testemunhar a tantos sobre a certeza de fé que adquiriria ouvindo em loco a mensagem do Mestre. O que eu sabia é que minha fé seria confirmada e edificada. “Quando voltar para o Brasil vou poder contar pra todos os irmãos que vi e ouvi coisas que testemunham o quanto estamos no caminho certo” . Não poderia ser diferente, já que eu sabia que estávamos vivendo na “geração do avivamento” brasileiro e ,se há um avivamento, pensava, só poderíamos estar fazendo a coisa certa, já que Deus não visitaria gente errada, concluía. Comecei a gostar de estar ali, ainda que sem “meu chão”, mas uma expectativa de crescimento futuro me consolava. Quantos convites pra pregar essa experiência geraria? Isso me fará escrever um best-seler. “Obrigado Deus, não sei se isso é sonho ou realidade, mas creio que estou vivendo uma grande restituição em minha vida. Estou sendo honrado por Ti”, orava eu grato e orgulhoso enquanto me aproximava da multidão sentada sobre o monte. Eles estavam agrupados na ribanceira da montanha, e o Mestre na parte mais baixa, isso me fez ter que dar a volta, passar ao lado dele, atrapalha-lo, já que e todos me olhavam enquanto me achegava. Ai que vergonha. Vergonha maior foi quando ele me olhou – serei fulminado – pensei - vou me prostrar me jogar por terra, tirar minhas sandálias, preciso fazer alguma coisa agora. Isso tudo passou por minha mente tão rapidamente que o maxímo que fiz foi avermelhar diante de um discreto sorriso dele e uma abanar da cabeça que me disse com a eloqüência de um gesto um bem-vindo caloroso. Percebi que por muito pouco minha religiosidade não me faz atuar circensemente. Agora eu estava envergonhado de verdade – “já atuei antes pensando que te impressionava, mas apenas impressionei quem me assistia atuar”. Ah se eu pudesse desaparecer, mas não podia. Isso era só o começo!

Sentei e Ele estava lá de pé. Falava num português nordestino carregado de sotaque que me fez lembrar o porteiro do meu prédio. Como poderia isso estar acontecendo? Jesus no agreste, sem cerimônia alguma? Rindo e chorando. Impossível conceber uma coisa dessas! Eu deveria estar louco, porém uma voz suave falou pessoalmente a mim – “minhas ovelhas ouvem a minha voz e me seguem”, estava claro aos meus sentidos que Ele falava a língua do povo, a língua simples que o povo entendia. Meu chão ia se esvaindo, meus paradigmas cristãos se abalaram só com o olhar e o sotaque. O que mais viria? O que mais eu veria?

Confesso que naquela hora ouvia a fala Dele sem ouvir o que Ele falava. Me preocupei com Seu sotaque e me esqueci de Sua mensagem. Já estava eu envergonhado de novo. Quantas vezes fiz o que eu acabara de fazer, julguei as pessoas pela fala, pela roupa, pela forma, sem nem atentar para o que elas tinham pra dizer? Eu havia acabado de fazer o mesmo com o Mestre. Agora eu torcia pra que meu chão sumisse de vez!

Tudo ali parecia me contradizer. As pessoas chamadas pelo Mestre de bem-aventuradas eram pobres e suadas. Nem de longe carregavam o estereotipo engomado pelo capitalismo que me fazia entender que alguém era prospero ou não. Era gente sofrida de mais para ser chamada de feliz, mas Ele as chamava assim e eu me chocava com a idéia, já que pra mim ser pobre era sinônimo de infelicidade. E Jesus esta ali dizendo aos pobres que eles eram felizes! Eu me encontrava exatamente como eles ali, pobre e suado, e entendi que só por ouvi-lo eu já era feliz. Sua voz me tornava bem-aventurado, uma consolação inenarrável encheu meu coração. Pela primeira vez na vida eu me senti de fato feliz. Pobre, suado, empoeirado e com sede, porém feliz.

Tantas coisas Ele dizia e todas eu já sabia, mas agora o peso das palavras Dele me achatava, me abatia. Ali sozinho num chão que não era meu eu O ouço bradar: “ Oh gente! Num se aperreiem com os tesouros dessa vida, vale a pena não. Você ajunta aqui e o ladrão vem e rouba, vem a traça e come, a ferrugem acaba com tudo. O bom é ajuntar tesouro no Céu , lá num tem ladrão, num tem traça e nem ferrugem”. Agora eu tinha que questiona-Lo e quase fiz isso publicamente. Por que num dar aos pobres uma esperança aqui, se eles não têm tesouro nenhum pra acumular mesmo? Por que num despertar a fé deles? Dizer que eles podem ao menos sonhar que serão ricos um dia? Quando eu ia falar, aquela brisa interior soprou de novo – “Se espera nas coisas dessa terra você é o mais miserável dos homens”. Esperança não é ilusão é fé que faz a alegria de esperar existir, eu pude concluir então. Então eu vi que tinha enganado muita gente em nome de Deus, prometendo uma esperança vazia de prosperidade e riquezas que nada, nada, nada valia diante daquele que dizia: “Num tenho nem onde deitar a cabeça” e que, mesmo assim, falava de felicidade com a propriedade de quem sabe o que é ser feliz.

- Perdoem os fofoqueiros e falem bem deles. Orem por esses infelizes. Eles não sabem o que é viver em paz.

- Os que maltratam vocês, eu digo que vocês devem amar essas também. Porque se vocês fizerem assim, mesmo que continuem apanhando, uma hora eles verão que sua honra é maior que o ódio deles.

- Os que não se importam com seu frio e com sua fome, pedem que vocês dêem a eles a pouca roupa que têm e a pouca comida que vos resta, aprendam a compartilhar, porque o Pai cuida de vocês. Ele veste as plantas e alimenta as aves, vocês são mais que plantas e passarinhos, por isso não se avexem.

- Primeiro busque o Reino de Deus e sua justiça, todo resto virá pra vocês mais cedo ou mais tarde.

Nossa, era tudo real, prático, vívido. Aquelas palavras tinham cheiro de gente e não de sermão dominical. Uma certeza me invadiu – Eu não tinha entendido nada sobre Jesus, mesmo carregando divisas eclesiásticas nos ombros, eu não O conhecia. Conhecia a minha religião, não conhecia a Cristo. Eu estava envergonhado, mas encontrava nisso um sentido gracioso, pois Ele me deixou vê-Lo.

Seu olhar me toca agora como quem diz: Viu como você não via?

Quando o despertador tocou, eu acordei assustado. As buzinas já se faziam ouvir e a cidade já havia despertado pra mais um dia de sons e cores berrantes. Agora eu estava de volta ao pesadelo real da minha vida confortável. Havia sonhado um sonho bom, lembrava de tudo e, mais ainda, das vergonhas que senti. Não teria apartir de agora o direito de continuar sendo o que eu era até a noite passada. Conheci outros valores, fui olhado por outros olhares, não consigo mais ser um opaco-religioso-urbano. Descobri que não havia avivamento algum, percebi que não era autêntico, que minha fé estava firme nas coisas dessa terra e distante da esperança celestial. Meu Deus quanta miséria a minha.

Agora os afazeres me impedem de continuar confessando e compartilhando, meu terno me aguarda engomado, meu perfume me chama, meu sermão esta pronto desde anteontem e minha igreja precisa de mim assim forte, corajoso e rico. Isso lhes dá uma sensação de poder e segurança. Obrigado gente, mas um povo avivado me espera. Preciso esquecer a vergonha e seguir triunfando. Fico sem chão, mas não posso perder a pose. Bom dia...

Assim termina o sonho e o pesadelo começa.


A Rocha Eterna, nosso chão, não muda e não negocia a Verdade.

Saúde e Paz
Fabio